O espelho (do latim speculum) exerceu desde sempre um grande fascínio sobre o espírito humano pois gera um espaço de ambiguidade: a imagem que reflecte é simultaneamente idêntica (ainda que invertida) e ilusória. O espelho assume, assim, sentidos radicalmente opostos: representa a verdade (símbolo mariano) e a aparência (símbolo demoníaco). A crítica de Platão (427-347 a. C.) sobre o simulacro assenta precisamente nesta relação entre o objecto real e o seu enganador reflexo. Inscrito no campo animado da experiência e da actividade psíquica, o espelho veicula o sentido de verdade equívoca, sendo considerado “o símbolo por excelência do Simbolismo” (Michaud, 1949). Nesta medida, assume uma função estética de destaque em todos os campos artísticos.
Na obra cinematográfica Orfeu (1949), de J. Cocteau (1889-1963), o espelho assume-se como lugar de passagem para realidades imaginárias, conduzindo ao mundo da morte. O simbolismo do conceito é brilhantemente ilustrado na Literatura pelo conto de H. C. Andersen (1805-1875) A Rainha da Neve (1845), onde o diabo fabrica um espelho que exagera os mais pequenos defeitos dos objectos reflectidos. Ao elevá-lo ao céu, com o objectivo de lá reflectir os anjos, o espelho desliza das mãos do demónio partindo-se em milhões de pedaços. Estes penetram nos olhos e nos corações dos homens que passam a contemplar em seu redor apenas o mal e a fealdade. L. Tolstoy (1828-1910) descreve, na obra Guerra e Paz (1869), um ritual de adivinhação popular no qual uma rapariga vislumbra num espelho o rosto do seu futuro marido.
Na Pintura, o espelho pode tornar presente uma personagem ou um objecto situado fora do campo do quadro; veja-se “As Meninas” (1656) de Velásquez (1599-1660). O espelho constitui-se também como um instrumento técnico ou conceptual que corrige a percepção do espaço. L. B. Alberti (1404-1472) e L. da Vinci (1452-1519) recomendavam o seu uso aos pintores; F. Brunelleschi (1377-1446) e Filarète (1400-1469) atribuíram-lhe o valor de princípio normativo de construção espacial. Na Arquitectura, os espelhos são utilizados para ampliar e aprofundar o espaço reduzido. Na Arte dos Jardins e dos Parques, os espelhos de água sugerem um segundo céu na profundidade das paisagens invertidas e tornam grandiosas as iluminações das festas nocturnas (Sourian, 1990).
No mito de Narciso, a acção do espelho (a água) reflecte a devastação do ser subjugado pela sua aparência. O torpor mortal vivenciado por Narciso demonstra que a reflexão de que o espelho é paradigma não designa apenas o simples acto do olhar mas o percurso de uma invenção do próprio ao outro e do conhecido ao desconhecido através de uma génese de formas e sentidos (Minazzoli, 1990). O reflexo convida à reflexão: no esforço para se descobrir a si próprio, o pensamento pode definir-se como espelho vivo da Inteligência divina. Assim, a reflexão do sujeito sobre a teologia da imagem e da semelhança transforma a metafísica do espelho numa filosofia da arte e da criação (Jacob, 1990).
Para lá do espelho encontra-se a demanda pela vida sonhada, realizada pelos artistas e pelos místicos, que torna possível o acesso a uma experiência espiritual unificadora. Os Sufistas representam o Universo como um conjunto de espelhos nos quais a Essência infinita se contempla sob múltiplas formas. O coração humano, símbolo do centro solar, da iluminação, da sabedoria, do conhecimento e da profundidade do inconsciente reflecte, para os budistas, a natureza de Siddhartha e, para os taoistas, o Céu e a Terra. Segundo Angelus Silesius (1624-1677), o coração é o espelho de Deus (Chevalier & Gheerbrant, 1982).
O vínculo entre o espelho e a alma foi esboçado por inúmeros pensadores. Segundo Plotino (205-270), a imagem de um ser está disposta de forma a receber a influência do seu modelo como se fosse um espelho (Enéadas, 4: 3). Este não se limita a reproduzir uma imagem mas participa activamente na Beleza, surgindo uma intensa simbiose entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla (Chevalier & Gheerbrant, 1982). De acordo com S. Gregório de Nissa (cc. 330-395), assim como um espelho retém na sua superfície polida os traços do ser que perante ele se apresenta, também a alma purificada de todas as impurezas terrestres capta a imagem da Beleza incorruptível (Daniélou, 1954). A este respeito, S. Paulo refere: “E todos nós, com a face descoberta, reflectimos como num espelho a glória do Senhor, somostransfigurados nessa mesma imagem cada vez mais resplandecente, pela acção do Senhor que é Espírito” (II Coríntios, 3:18).
O conceito também foi alvo de interpretações psicológicas. A Especulação (originalmente a observação dos movimentos estelares com o auxílio de um espelho) considera que o conhecimento se reflecte na mente como num espelho, orientando-se para a contemplação da verdade. Distingue-se da recepção passiva dos dados da experiência pois implica a descoberta de algo novo (Cabral, 1997-2001). G. Bachelard (1884-1962), na obra A Água e os Sonhos (1942), destaca “a Psicologia do Espelho”. Para J. Lacan (1901-1981), o Estádio do Espelho detém um valor fulcral no desenvolvimento da criança, promovendo uma identificação primordial estruturante face ao mundo fragmentário da relação original com a entidade materna. A criança de 6 a 8 meses reconhece na imagem do espelho a sua totalidade e neutraliza a angústia associada à sua discordância relacional, assumindo uma imagem ideal que capta de forma plena o seu ser. D. W. Winnicott (1896-1971) retomou a ideia do espelho como Estádio Inaugural da Estruturação do Sujeito: a criança transforma a mãe na encarnação viva do espelho antes de nele reconhecer, numa segunda fase, a família e o campo social.
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